O milagre do gênio é imprevisível. Mozart, aos sete anos de idade, surpreendeu por seu virtuosismo musical; no entanto, esse tipo de fenômeno nunca aconteceu com arquitetos. A aprendizagem e o amadurecimento em arquitetura são um processo que passa por um embasamento técnico e por vivências formais e espaciais tomadas da realidade. É essa experiência que permitirá ao criador expressar-se com os instrumentos básicos da disciplina. Evidentemente, não é indispensável, para ser um gênio da arquitetura, assistir às aulas na academia, mas sem dúvida existe um ponto de partida para um trajeto que reunirá o conhecimento necessário para conceber a forma de uma edificação. É um percurso que pode ser lento ou acelerado, de acordo com as circunstâncias familiares, sociais e culturais que emolduram a formação intelectual, cultural e técnica do futuro arquiteto.
Dois casos paradigmáticos de gênios que não se formaram na academia e souberam projetar e construir desde muito jovens são Le Corbusier e Frank Lloyd Wright. O primeiro obteve os conhecimentos essenciais das técnicas artesanais e das expressões artísticas em uma escola de artes e ofícios na sua cidade natal, Chaux-de-Fonds, que lhe permitiu, aos 17 anos, projetar e construir a casa Fallet. Wright, aos 22 anos, construiu sua casa em Oak Park, Chicago. Por outro lado, a figura de Louis Kahn identifica o lento despertar da genialidade, já que, formado aos 25, ele projetou com 39 anos de idade sua primeira obra: a residência Oser (1940), em Elkins Park, na Pensilvânia.
A velocidade do amadurecimento criativo depende do ponto de partida na vida do adolescente. A mãe de Wright iniciou-o no sistema educativo de Friedrich Froebel, que, baseado em experimentações geométricas e formais, estimulou sua vocação para a arquitetura. Le Corbusier formou-se muito cedo na Suíça com Charles L’Eplattenier, que o introduziu nas correntes estéticas européias associadas com o artesanato e com a exatidão na produção de relógios. Por outro lado, Oscar Niemeyer teve um progresso mais lento até achar o caminho da arquitetura e manifestar sua genialidade. Decorre daí serem discutíveis tanto a afirmação de Yves Bruand de que “a ascensão de Niemeyer foi fulgurante”, (1) como aquela que estabelece que o “milagre” aconteceria em 1936, quando colabora com Le Corbusier.
É curioso constatar que, sendo um dos arquitetos que mais escreveram sobre os acontecimentos marcantes de sua vida, Niemeyer não tenha se aprofundado no processo que o levou a descobrir a vocação e sua linguagem expressiva. Biógrafos e críticos tampouco fizeram uma leitura do conjunto de projetos que precedem a difusão do novo vocabulário, baseado nas formas curvas, que aparecem primeiro levemente no Pavilhão do Brasil na Feira de Nova York e depois com firmeza no conjunto da Pampulha.
O que identifica a personalidade de Niemeyer é a persistência da linha, representada pelo traço limpo e puro sobre o papel branco, antecipando a materialidade de formas e espaços. Primeiro, a linha reta dos projetos iniciais, e logo as curvas livres da arquitetura, das mulheres e das paisagens. Segundo o seu próprio testemunho, a paixão pelo desenho começou na infância: “Costumava desenhar no ar com o dedo. Minha mãe perguntava: ‘Menino, o que você está fazendo?’. E eu respondia com a maior naturalidade: ‘Desenho’. Na realidade, eu fazia algumas formas no espaço, formas que conservava na memória, que corrigia e desenvolvia como se de verdade estivesse desenhando”. (2)
Ele conta também que nos seus primeiros anos de escola havia uma professora - Hermínia Lyra da Silva - que o fazia desenhar com lápis de cor: “Eu fazia bules, xícaras, estatuetas; desenhos que sempre recebiam nota dez e que minha mãe guardava orgulhosa”. (3) Até decidir entrar na Escola Nacional de Belas-Artes para estudar arquitetura, Niemeyer continuou o exercício do desenho livre. Quando começou a trabalhar na tipografia do pai, distraía-se desenhando focinhos de buldogue e retratos de jogadores de futebol; e depois de casado fazia para a filha Anna Maria cabeças de buldogue com miolo de pão, pintadas meticulosamente a nanquim.
Esses primeiros anos da juventude não foram aproveitados para consolidar sua futura vocação para o desenho: ele só haveria de começar seus estudos na Enba aos 23 (4) (a escola permitia o ingresso aos 17 anos). Na verdade, Niemeyer não tinha grande vocação nem disciplina para o estudo regular, alternando a sua paixão pelo futebol com a vida boêmia, que transcorria entre bares, cabarés e cinemas, com uma turma de amigos. Ao privilegiar essas atividades “de recreio”, segundo ele próprio, abandona os estudos no Colégio Santo Antônio Maria Zacarias, dos padres barnabitas, para terminá-los mais tarde no Liceu Francês. Treinava no Fluminense Futebol Clube e chegou a participar de um jogo contra o Flamengo no Estádio das Laranjeiras. Foi até chamado para integrar a equipe profissional do Flamengo, convite que afortunadamente recusou. Alternava os bares da Lapa, o cabaré da rua do Passeio, o café Lamas e o cinema Polytheama com as festas musicais no Clube de Regatas Guanabara.
Sem dúvida, esse espírito livre e despreocupado moldou sua personalidade modesta e popular, assim como sua identificação com as pessoas humildes, suas lutas e sofrimentos, o que provavelmente contribuiu para a filiação ao Partido Comunista Brasileiro. Como sua família não possuía boa situação econômica, era mantida pelo avô Antônio Augusto Ribeiro de Almeida, ministro do Supremo Tribunal Federal, que os abrigava em uma grande residência em Laranjeiras. Quando Niemeyer casou, em 1928, com Annita Baldo - ele com 21 anos, ela com 17 -, passou a trabalhar na tipografia do pai para poder se manter. Em sua autobiografia, ele comenta as privações daqueles anos, quando alugou uma pequena casa, onde morava com a esposa, a prima Milota (que contribuía com o sustento do casal) e, em seguida, com a filha Anna Maria, nascida pouco tempo depois, em 1932. Entrementes, ainda segundo sua autobiografia, declara definitivamente o seu interesse pela arquitetura e decide, em 1929, ingressar na Escola Nacional de Belas-Artes. (5)
Entre o clássico e o moderno
Existem escassas referências sobre a sua vida entre 1929 e 1934, ano em que se gradua como arquiteto. O próprio Niemeyer minimizou a significação desses anos de estudo. Além disso, não existem relatos nem testemunhos sobre sua participação na sucessão de fatos importantes que caracterizaram esse período. No fim de 1929, pouco depois da crise na bolsa de Nova York, Le Corbusier ministra duas palestras no Rio de Janeiro.
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Em 1930, o diretor da Enba, José Marianno Filho, foi o anfitrião do 4º Congresso Pan-Americano de Arquitetos, no qual ocorreu um exacerbado debate entre os modernos e os neocoloniais, que contou com a presença de Gregori Warchavchik e Flávio de Carvalho. Marianno Filho foi substituído em dezembro por Lucio Costa na direção da escola, pouco depois da revolução de Getúlio Vargas. Cria-se nela um efervescente ambiente de mudanças que culminarão no salão “revolucionário” de 1931, com a presença de artistas e arquitetos da vanguarda moderna, alguns deles convidados por Costa para ministrar cursos na Enba (entre os quais estão Warchavchik, Alexandre S. Buddeus, Celso Antônio e Leo Putz).
Em setembro de 1931, Costa é demitido e os estudantes entram em greve contra o novo diretor, Archimedes Memória. Em outubro do mesmo ano, o júri da União Pan-Americana se reúne na Enba para definir os prêmios no concurso do Farol de Colombo, em Santo Domingo; Frank Lloyd Wright, membro da banca internacional, apóia o movimento estudantil e, convidado por Jorge Machado Moreira, do diretório acadêmico, ministra uma palestra. Em 1932, ocorre uma longa paralisação das aulas por causa da revolta paulista contra Vargas. Em 1933, novamente a vanguarda arquitetônica se fez presente no Salão de Arquitetura Tropical, organizado por João Lourenço da Silva, Alcides da Rocha Miranda, Ademar Portugal e Alexandre Altberg. Em 1934, a nova Constituição é promulgada e em 1935 ocorrem o levante comunista e o fechamento da Universidade do Distrito Federal, que contava também com a participação dos intelectuais progressistas, entre eles Lucio Costa.
Nas casas sem dono, Lucio Costa experimenta soluções volumétricas identificadas com as “caixas brancas” de Le Corbusier
Infelizmente, não se fez ainda uma pesquisa profunda acerca do ensino na Enba nesses anos convulsos. Mas o que se evidencia da estrutura docente, da organização dos cursos e da equipe de professores é que as mudanças estabelecidas por Lucio Costa não conseguiram alterar radicalmente os fundamentos práticos e teóricos da academia. Foram estabelecidos cursos paralelos com os professores convidados nos últimos anos - demitidos junto com Costa; e foram também adotados temas típicos da arquitetura contemporânea (conjuntos habitacionais, hospitais, vilas operárias com casas mínimas, escolas), além de se ter incorporado o urbanismo. No entanto, a estrutura básica, com o predomínio de um ensino dito “artístico”, manteve-se, o que fica registrado nas palavras de Lucio Costa: “Foi o canto do cisne da pretendida reforma do ensino. Minha intervenção foi praticamente negativa, pois desarrumei uma coisa que, bem ou mal, existia; refiro-me ao ensino, e não ao salão. Havia uma coisa organizada, que foi rompida, e não ficou nada em troca”. (6)
Niemeyer, que não tinha grande vocação para os estudos teóricos, matérias técnicas ou desenhos decorativos, pouco assistia às aulas dos professores tradicionais e foi aprovado nesses cursos com notas mínimas. Tampouco participou de um grupo específico da sua turma. Dos colegas, ele cita Galdino Duprat da Costa Lima, Francisco Saturnino de Britto e Milton Roberto, e, surpreendentemente, não inclui Hélio Uchoa, com o qual trabalhou em importantes obras na década de 1950. Niemeyer não teve contato com o ensino proposto pelo grupo de professores de vanguarda no período 1930/31, já que essas aulas eram ministradas nos anos finais do curso.
Desinteressado, Niemeyer pouco assistia às aulas dos professores tradicionais e foi aprovado nesses cursos com notas mínimas
Como seu histórico acadêmico demonstra, Niemeyer matriculou-se no curso geral em 1930. Não há registro de notas nas matérias da primeira série (desenho figurado, desenho geométrico e história da arte): uma simples observação indica que havia sido “promovido nas notas do primeiro ano”. Também não há registro para o ano de 1931. As notas de três das quatro matérias da segunda série (desenho figurado, desenho de ornatos e escultura de ornatos) são lançadas no início de 1932, ano em que ocorre, entre julho e outubro, a Revolução Constitucionalista contra Vargas. A última (geometria descritiva) é lançada em novembro. Nesse mesmo ano é promovido nas notas das matérias da terceira série sem de fato cursá-las de acordo com o decreto de 5 de dezembro. Por fim, em 1933, entra no curso especial de arquitetura, ano em que vai trabalhar no escritório de Costa, concluindo seus estudos em dezembro de 1934.
Evidentemente foi um percurso irregular, no qual fica evidente seu desinteresse pela maioria das matérias ministradas. Desafortunadamente, a reforma curricular proposta por Costa, em que os temas de projeto arquitetônico estavam distribuídos ao longo dos cinco anos de estudos, não havia vingado. (7) Niemeyer concentrou seus maiores esforços na conclusão dos temas dados para a matéria composição de arquitetura nos últimos dois anos do curso, obtendo suas melhores avaliações, fato que lhe possibilitou terminar o curso, junto com Milton Roberto, em primeiro lugar. (8)
Talvez isso demonstre que não havia um confronto acintoso entre acadêmicos e modernos. Os professores tradicionais, como Archimedes Memória, Adolfo Morales de los Rios Filho e Raul Saldanha da Gama, aceitavam os projetos modernos, que eram apoiados por Attilio Corrêa Lima, professor de urbanismo; Gastão Bahiana, professor de perspectiva; e Paulo Pires, professor de composição de arquitetura. Provavelmente Niemeyer não teve que apresentar projetos acadêmicos como Affonso Reidy, que em 1930 projetou um Palácio de Convenções Rotarianas nos moldes clássicos, para obter a medalha de ouro no concurso do grau máximo para o trabalho final de graduação. É importante ressaltar que dois anos antes da graduação de Niemeyer, em 1932, o projeto moderno de um ambulatório infantil, feito por Ernani Vasconcellos e avaliado por Memória, Saldanha da Gama e Paulo Pires, obteria o primeiro lugar, recebendo o Prêmio Caminhoá, que outorgava uma bolsa de viagem por dois anos na Europa.
A lição dos mestres
Logo após ter iniciado o curso na Enba, o jovem Niemeyer presenciou o debate entre antigos e modernos, naquele curto período em que Lucio Costa dirigiu a escola. Entre as tentativas de mudanças no ensino e o sucesso do salão do 1931, Costa se consolidou como líder indiscutível da modernidade arquitetônica carioca, secundado pelos recém-formados Affonso Reidy, Alcides da Rocha Miranda, Luiz Nunes, Jorge Machado Moreira, Marcelo e Milton Roberto, entre outros. Na cidade começaram a surgir prédios sob a influência do movimento moderno europeu: em 1929, Marcelo Roberto construiu o edifício de apartamentos na rua do Lavradio, com claras influências da Bauhaus; em 1931, Reidy e Gerson Pinheiro realizam o Albergue da Boa Vontade; no mesmo ano Gregori Warchavchik acaba a importante residência Nordschild, na rua Toneleiros, posteriormente faz com Lucio Costa as casas operárias na Gamboa e, em 1932, a residência Schwartz, em Copacabana. Cabe supor que desde o início a sensibilidade estética de Niemeyer o levou a optar pela vanguarda.
Dois anos antes da graduação de Niemeyer, o projeto moderno de um ambulatório, de Ernani Vasconcellos, ganharia o Caminhoá
Em 1933, ingressando no curso especial de arquitetura - ocasião em que a maioria dos estudantes da sua geração buscava trabalhar nas empresas construtoras ou nos escritórios de arquitetura comercial, para obter a experiência prática que não se recebia na escola -, Niemeyer decide procurar trabalho no escritório de Lucio Costa. Este tinha finalizado sua sociedade com Warchavchik, tanto pela escassez de obras como por incompatibilidades estéticas. Segundo a justificativa do próprio Costa, “o trabalho escasseava e ainda porque o tal ‘modernismo estilizado’ que às vezes aflorava já não parecia - ao Carlos Leão e a mim - ajustar-se aos verdadeiros princípios corbuseanos a que nos apegávamos; desencontro que culminou com os móveis de feição ‘decorativa’ da casa Schwartz, quando já então havia aquela série impecável de cadeiras para as várias funções, idealizada por Le Corbusier, Charlotte Perriand e Pierre Jeanneret”. (9) A partir desse ano, até 1935, Costa formou uma sociedade com Carlos Leão, em um pequeno escritório na avenida Rio Branco. Como tinham poucos encargos, o pedido de emprego foi aceito, mas, em vista da difícil situação econômica, Niemeyer sujeitou-se a trabalhar sem receber salário.
É aqui que se manifesta a sua vocação para o desenho arquitetônico, mais que pela prática profissional, procurando achar as leis estéticas e conceituais que definiam os códigos da arquitetura moderna. Era o desejo de dominar o desenho abstrato, nítido e limpo, mais que a intenção de achar um relacionamento entre desenho e natureza ou entre desenho e construção. Nesse sentido, sua formação foi diferente da de Le Corbusier. Este procurava nos detalhes da arquitetura histórica e nos sistemas construtivos a essência do desenho, como o demonstram seus vários Carnets, elaborados nas viagens realizadas entre 1907 e 1911, quando tinha 20 anos.
Da fase inicial de Niemeyer, a única casa citada por críticos, historiadores e biógrafos é a residência Henrique Xavier, na Urca
Na ocasião em que Costa projeta as casas sem dono, experimentando soluções formais, espaciais e volumétricas identificadas com os modelos das “caixas brancas” de Le Corbusier, Niemeyer dedica-se a descobrir os segredos desses desenhos: “A quello scopo, cercavo di studiare attentamente i progetti che si elaboravano nell´atelier di Lucio, e nelle ore libere consultavo i libro di Le Corbusier che per gli studenti della mia epoca constituivano un´iniziazione obbligatoria”. (10) Ou seja, o escritório usava como referência o primeiro livro de Corbusier, Vers une architecture, e a Oeuvre complète 1910-1929, que acabara de ser publicada e começava a circular no Brasil, especialmente depois da sua primeira visita. Este volume serviu de clara inspiração para a elaboração dos primeiros projetos de Niemeyer, segundo seu próprio testemunho: “C’est lá que nous avons étudiée, en feuilletant ses livres, en essayant de percevoir ses intentions, en tentant de découvrir, dans chaque trait et dans chaque courbe, le but architectural”. (11)
Se for considerado que, nas esporádicas visitas ao escritório de Costa, Warchavchik não tenha percebido a presença de Oscar, e levando em conta o relato do Mestre sobre a participação tranqüila e quase anônima no período 1933/35, é possível concluir que esta foi uma etapa de estudo analítico e introspecção para o jovem arquiteto. A análise detalhada dos projetos das casas e dos grandes edifícios (como o Palácio das Nações, em Genebra) realizados por Le Corbusier, assim como dos cinco princípios canônicos do desenho moderno, e os desenhos das residências projetadas no escritório - as de Álvaro Osório de Almeida, Genival Londres e Coelho Duarte - permitiram a compreensão dos aspectos compositivos típicos, tanto funcionais quanto formais.
Niemeyer aprendeu ali a também diferenciar os traços e as representações dos dois Mestres, a partir dos quais foi buscando a sua própria linguagem gráfica, num processo de decantação ao longo da seqüência dos projetos realizados entre os anos 1934 e 1937, até a construção do seu primeiro prédio, a Obra do Berço. Cabe observar que nesse período o relacionamento com a realidade do exterior era mínimo: sua primeira viagem se realizaria por ocasião do projeto do Pavilhão do Brasil na Feira de Nova York. Tampouco elaborava desenhos de paisagens naturais ou urbanas, que iria produzir mais à frente. Nesse sentido, o primeiro registro da natureza carioca - a “descoberta” da curva e das montanhas - se manifesta quando desenha as perspectivas do projeto de Le Corbusier para o Ministério da Educação e Saúde, na praia de Santa Luzia.
A afirmação de que o gênio se revelou na solução obtida no projeto do MES é controvertida. Provavelmente, o que ocorreu foi o resultado de processo evolutivo, uma espécie de decantação, mais do que uma epifania. Ele próprio reafirma essa tese quando explica que somente reelaborou a solução de Le Corbusier na praia de Santa Luzia, transformando a lâmina horizontal em vertical e elevando os pilotis de quatro para dez metros. Sem dúvida, foi muito mais que isso. Anos de estudo dos riscos e dos projetos do Mestre francês o levaram a dominar a linguagem racionalista, a ponto de o próprio Corbusier ficar surpreso com a maestria de Niemeyer na representação das formas e espaços nas perspectivas desenhadas do MES e do projeto da Cidade Universitária. Nesse ponto se inicia o traço firme e refinado de Oscar, verificável na comparação entre os riscos de Le Corbusier e a posterior interpretação do jovem arquiteto.
Os primeiros projetos
Niemeyer nunca se preocupou em documentar uma genealogia séria da sua trajetória arquitetônica. Decorre que nos muitos livros realizados sob sua supervisão ou controle nunca aparecem os projetos realizados entre 1934 e 1937. Como se sente identificado com a linha curva como representação da sua personalidade criativa, e também, em seu famoso poema, critica a linha reta dura e inumana - “Ce n´est pas l´angle droit qui m´attire. Ni la ligne droite, dure et inflexible creé par l´homme -, (12) esquece-se de que ao longo da sua vida produtiva desenhou dezenas de prédios cartesianos. Os críticos, historiadores e biógrafos tampouco concedem alguma importância a essa fase: na maioria dos textos - Papadaki, Botey, Bruand, Corona -, a única casa citada a aparecer é a de Henrique Xavier, na Urca.
No concurso para a sede da ABI, Niemeyer e seus associados criaram um sistema em ziguezague, em volume pouco expressivo
Mas na seqüência de projetos publicados na revista PDF, da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal, o primeiro projeto, em 1934, foi o Club Esportivo. A planta quadrada, com pátio interno e terraço-jardim, tem grande semelhança com as casas sem dono de Costa. Sem pilotis, com janelas corridas horizontais, organiza-se com estrutura simétrica indicada pelo acesso principal e as duas escadas que comunicam os três pavimentos. Já se percebe a procura da transparência entre os espaços externos e internos e a adaptação ao clima nas pérgulas que protegem o terraço-jardim.
Maior sofisticação planimétrica e espacial aparece no projeto da casa Henrique Xavier, na Urca (1935/36). Aqui se percebe claro domínio das articulações formais possíveis em um espaço pequeno, definido por um terreno entre empenas, onde consegue criar um sistema de caixas articuladas e perfuradas que permite a ventilação e a implantação de espaços livres abertos, com vegetação no térreo e no terraço-jardim, que comunicam os dois extremos do lote. Esse domínio das interrelações espaciais demonstra a sua leitura aprofundada dos interiores elaborados por Le Corbusier na villa Meyer (1925), na villa em Garches (1926), nas Immeubles Villas (1928/29) e na villa em Cartago (1928).
Na brilhante adaptação do prédio da maternidade ao forte declive do terreno, anuncia-se o desenho do Grande Hotel em Ouro Preto
Segundo Papadaki, nesse projeto a visão poética de Niemeyer se libera na verticalização do espaço, obtido por uma seqüência de cheios e vazios, que se organizam em um movimento em direção ao céu, em um vôo leve, semelhante ao de Ícaro, e assumindo o lirismo de Shelley e Rilke. (13)
Aqui Niemeyer evidencia a sua capacidade de elaborar soluções complexas com formas articuladas espacialmente em uma estrutura geométrica simples. Essa obra expressa um caminho que o levará ao mundo das curvas puras, diferenciado da simplicidade esquemática dos projetos de Carlos Leão (por exemplo, o anteprojeto para o Clube de Engenharia, elaborado com Lucio Costa em 1936, ou o do Colégio Pedro 2º, de 1937) e da integração entre o moderno e o vernáculo que identificará a produção de Costa, como em Monlevade (1934) e no Museu das Missões (1937).
Depois da escassa atividade desenvolvida em 1935, quando Lucio Costa fecha o escritório, em 1936 ocorre uma intensa demanda por projetos. Em março é aprovada pelo ministro Gustavo Capanema a equipe selecionada por Costa para elaborar o projeto do MES, onde se integra Niemeyer, primeiramente trabalhando na equipe do projeto brasileiro e em junho ao lado de Le Corbusier, durante a permanência deste por quase um mês no Rio de Janeiro. Foi um trabalho intenso, não somente na realização dos desenhos do MES, mas também no projeto da Cidade Universitária, no qual Niemeyer colaborou tanto com Le Corbusier quanto com Costa. Algumas das principais perspectivas do projeto foram desenhadas por Niemeyer, assim como alguns prédios específicos: o Clube dos Estudantes tem o traço de Niemeyer e reflete a influência da solução da praia de Santa Luzia do Mestre francês, com o volume puro alongado, a presença dos pilotis e dos grandes terraços abertos que se abrem para as áreas verdes.
Em 1936, Niemeyer também participou de dois concursos. Associado com os colegas de turma Fernando Saturnino de Britto e Cássio Veiga de Sá, entra no concurso para o projeto da sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), vencido por Marcelo e Milton Roberto e cujo segundo lugar coube a Alcides da Rocha Miranda, Lélio Landucci e João Lourenço da Silva. Sem dúvida, o projeto dos irmãos Roberto era o melhor, não somente na solução volumétrica e funcional, mas também na utilização dos brises na fachada. Niemeyer e seus associados criaram um sistema em ziguezague, semifechado, definindo um volume pouco expressivo. Colocando a entrada principal na esquina, acabaram por debilitar a continuidade do edifício nas duas fachadas. Pela primeira vez aparece a memória explicativa do projeto escrita à mão, o que será uma característica constante nos projetos futuros de Niemeyer. Ele também desenvolve um elaborado estudo dos espaços interiores e dos grandes salões para as atividades sociais. Os desenhos apresentados ainda não tinham a limpeza e a expressividade dos posteriores, que serão assumidas da experiência ao lado do Mestre francês.
No concurso para a sede do Ministério de Fazenda, vencido por Eneas Silva e Wladimir Alves de Souza, o segundo lugar foi outorgado à equipe de Oscar Niemeyer, Jorge Machado Moreira e José de Souza Reis. Esta solução, com um volume puro sobre pilotis, foi mais coerente, propondo na fachada a alternância de pano de vidro e um pano total com brises, semelhantes aos do MES. O júri elogiou o sistema de circulação, o cuidado no estudo da insolação e a limpeza da estrutura de concreto armado.
Em 1937, os dois últimos projetos desta seqüência, anteriores ao pavilhão em Nova York, no qual obteve o segundo prêmio e pela primeira vez surgiria uma grande cobertura curva, (14) são os do Instituto Nacional de Puericultura, elaborado com Olavo Redig de Campos e José de Souza Reis; e o anteprojeto de uma maternidade. As duas propostas evidenciam seu domínio da grande escala, das articulações espaciais internas e do equilíbrio entre os volumes que compõem o conjunto. Com certeza, o Instituto Nacional de Puericultura influenciou a solução de função semelhante na Cidade Universitária, proposta por Jorge Machado Moreira e Ernani Vasconcellos. E na brilhante adaptação do prédio da maternidade ao forte declive do terreno, com o volume horizontal suspenso no ar pelos finos pilotis, anuncia-se o desenho futuro do Grande Hotel em Ouro Preto, MG. Com esses projetos se fecha a experimentação teórica e começa a etapa construtiva que se inicia com a Obra do Berço. E aqui também tem fim a imagem racionalista cartesiana da linguagem corbusieriana baseada no amor à linha reta.
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